Embora tenha a sua própria especialidade - engenharia aeronáutica - a aviação comercial é um tema fértil para aprofundar conversas sobre engenharia química. O assunto de aviação tratado nesta publicação versa sobre os coletes salva-vidas. A explicação dada pelos tripulantes aquando das instruções de segurança que precedem um voo é que o colete se encontra localizado algures na base ou proximidade do assento, e que uma vez vestido, pode ser usado de duas formas: insuflado puxando umas cordas em posição frontal, ou enchido a sopro através de uma válvula/canal manual.
O aparentemente banal colete salva-vidas que se espera nunca ter de ser usado possui na sua concepção particularidades bem interessantes que vale a pena explorar. Mas vamos por partes: comecemos por tentar explicar o que é um desses objetos e como se descreve. Segundo a Cruz Vermelha Internacional trata-se de um "item de segurança de emergência para passageiros de aeronaves disponível em todos os transportes aéreos para todas as pessoas a bordo." Este consiste num "colete flutuante de 2 células automaticamente insuflável com CO2 e com um sistema de insuflação oral". Daqui se depreende que, na versão de suporte à aviação, o standard é que este item tenha um sistema integrado de armazenamento e descarga de CO2 para assegurar o pronto enchimento do mesmo.
Pormenores a respeito de insuflação automática de coletes salva-vidas com CO2:
A consulta da patente chinesa CN217436027U intitulada 'Colete salva-vidas inflável para cobrir a cabeça' cujo registo pertence desde 2022 à Ningbo Zhenhua Lifesaving Equipment Co Ltd, permite obter dados importantes sobre como se articula o armazenamento e descarga de CO2 na insuflação automática de coletes. Nela pode ler-se:
"Como uma melhoria, o dispositivo de insuflação automática compreende um cilindro de gás e uma válvula de gás, a válvula de gás é conectada com a câmara de gás e o cilindro de gás, uma fivela de puxar usada para controlar a deflação da válvula é disposta na válvula de gás e a fivela de puxar estende-se para fora da manga do colete.
(...) Os coeficientes de expansão da primeira parte de expansão 22 [na figura]
e da segunda parte de expansão 23 são maiores que os da parte de colar 21, o coeficiente de expansão na insuflação refere-se ao limite superior do volume de expansão da peça após a peça ser insuflada com o mesmo volume de gás, quanto maior for o limite superior do volume de expansão da peça, maior será o coeficiente de expansão. Quando o colete salva-vidas é usado junto ao corpo, a primeira parte de expansão 22 e a segunda parte de expansão 23 estão posicionados na frente do peito, o maior volume de expansão não influencia a visão das pessoas, de modo que a flutuabilidade é melhorada, a capacidade de resgate de prevenção de afogamento é melhorada e sob o mesmo volume de expansão, a câmara de ar 2 pode ser menor, de modo que o volume da capa do casaco 1 seja reduzido e o uso seja mais conveniente.(...) O dispositivo de insuflação automática 5 composto por uma garrafa de gás 51 e uma válvula de gás 52, a válvula de gás 52 está conectada com a câmara de gás 2 e a garrafa de gás 51, 33g de gás dióxido de carbono é preenchido na garrafa de gás 51, uma fivela de puxar 53 usada para controlar a liberação de gás da válvula de gás 52 está disposta na válvula de gás 52, a fivela de puxar 53 se estende para o exterior da capa de revestimento 1, a válvula de gás 52 pode ser aberta rapidamente puxando a puxe a fivela 53 para inflar e a operação é conveniente e rápida
(...) A aparência externa deste colete salva-vidas é suave e cheia, e as linhas são de natureza suave, pode promover uma sensação estética do corpo inteiro, permite que o utilizador na água possa usar o colete salva-vidas por um longo tempo e sem produzir desconforto, e a cor de toda a capa do colete 1 é laranja, e a cor brilhante pode tornar o alvo mais notável, e é mais poderoso para resgatar sob busca e resgate, usa tecido de superfície à prova de água e de dia chuvoso, e pode evitar vento frio no inverno.
E se o CO2 de todos os coletes salva-vidas a bordo fosse libertado para o ar da cabine?
O interessante livro de divulgação de ciência de título
A Vida Secreta dos Líquidos: As substâncias mágicas que fluem pelas nossas vidas (por Mark Miodownik) tem, entre outros méritos, o de mostrar como de entre as várias restrições de substâncias que se pode ou não transportar num avião, a que mais perigo pode causar é o próprio combustível que o avião é obrigado a transportar consigo. Esse relato põe a nu que existe uma convenção daquilo que são cargas perigosas em função da utilidade que podem ter a bordo de um avião, sobretudo no que diz respeito ao possível uso maléfico.
Não obstante, a existência de coletes salva-vidas a bordo levanta questões em linha com a do livro de Miodownik. Senão vejamos: diz-nos a mesma
Cruz Vermelha Internacional que um tal colete salva-vidas tem como especificação duas cargas de
CO2 de 16 g cada, capazes de gerar um volume de insuflação de 16 L. Se multiplicarmos este volume por 200 lugares de avião (cada qual com seu respetivo colete), temos um potencial de libertação de 3200 L de CO2, volume passível de se misturar com o ar respirado na cabine e alterar-lhe a composição. Se o volume da cabine for de 147 000 L (assumamos: 1.77 m de raio interno, 30 m de comprimento, e 50 % de volume para porão de carga) isso significa uma chance teórica de baixar a concentração de oxigénio no ar respirado de 21 % para 17% ou menos. Prolongadamente esta concentração está associada a problemas na tomada de decisão e ao estado de anoxia, que é caracterizado por confusão mental e atordoamento.
Claro que este cenário deve ser ressalvado pela referência à existência de potentes sistemas AVAC nos aviões, capaz de preservar e gerir a boa qualidade do ar interior. Dados da
Japan Airlines indicam que a renovação do ar de cabine acontece a cada 2-3 minutos, o que denota que um hipotético risco de libertação sincronizada de
CO2 dos coletes salva-vidas para o ar da cabine seria rapidamente debelado pelo sistema de ar condicionado existente a bordo.
Sobre a qualidade do ar acresce ainda que aeronaves modernas são equipadas com filtros de ar altamente eficientes - do tipo HEPA - que são 99,97% eficazes na remoção de vírus, bactérias e fungos medindo 0,3 μm de diâmetro, incluindo o Coronavírus.
Como se chega à quantidade de 2 × 16 g CO2 como sendo a quantidade necessária à insuflação de um colete salva-vidas?
De acordo com o livro
The Sea Survival Manual (Howorth, M. Howorth, A&C Black, 2013)
todos os coletes salva-vidas e auxiliares de flutuação na União Europeia devem estar em conformidade com as normas europeias EN. (...) Existem quatro categorias definidas por flutuabilidade para um usuário "médio" de 70 kg, com flutuabilidade medida em Newtons, onde 10 Newton equivalem a 1 kg de flutuação.
Categorias de flutuabilidade para coletes salva-vidas:
- 50 Newton (EN93). Apenas para uso por nadadores competentes em águas protegidas quando a ajuda estiver próxima. Este estilo não garante que uma pessoa fique com o rosto para cima. É um auxiliar de flutuação, não um colete salva-vidas.
- 100 Newton (EN395). Para uso em águas abrigadas, mas onde a ajuda está mais longe. É improvável que endireite um sobrevivente inconsciente.
- 150 Newton (EN396). Para uso geral em alto mar e em condições climáticas adversas. Pode não endireitar imediatamente uma pessoa inconsciente usando roupas pesadas.
- 275 Newton (EN 399). Para condições offshore e extremas e aqueles que usam roupas de proteção pesadas para garantir o auto-endireitamento de um sobrevivente inconsciente.
Novamente recorrendo à Cruz Vermelha Internacional, constata-se que a a flutuabilidade dos coletes salva-vidas obrigatórios para transporte aéreo é de 156 Newton, caindo na categoria de uso geral em alto mar. Infere-se daí que 2 × 16 g é a quantidade que produz o volume necessário para que seja assegurada essa flutuabilidade.
O que é ou não é permitido transportar como bagagem de avião, quando o tema envolve libertação de gases?
A resposta a esta questão pode ser dada consultando o organismo federal norte-americano que dá pelo nome de
Administração para a Segurança dos Transportes (FAA). Ficamos a saber, por exemplo, que é possível transportar como bagagem de mão ou despachada um colete salva-vidas com até dois cartuchos de
CO2 dentro, mais dois cartuchos sobressalentes, mas não se pode transportar cartuchos de
CO2 sem o colete salva-vidas associado.
A FAA permite que azoto líquido seja transportado como bagagem despachada, mas exige que o azoto líquido seja embalado num recipiente fechado (dry shipper).
Também como bagagem despachada é possível transportar gás pimenta. Uma lata de spray de pimenta de 118 ml é permitida desde que esteja equipada com um mecanismo de segurança para evitar descarga acidental. Sprays de autodefesa contendo mais de 2% em massa de gás lacrimogêneo (CS ou CN) são proibidos.
Proibido estão todos os cilindros pequenos de gás comprimido que não sejam cilindros de oxigênio médico pessoal. Porém, pode-se transportar um cilindro de gás comprimido vazio a bordo de um avião. Para ser permitido (na bagagem de mão ou despachada), deve estar claramente visível para o oficial que o cilindro está vazio. O oxigênio pessoal é permitido se a válvula reguladora não tiver sido adulterada ou removida.
Também excluídos estão os gases propano e butano, cloro para piscinas, motores que gerem gases de escape, extintores, maçaricos a gás, tinta em spray, ou airbags de veículos.