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Sobre o amoníaco presente no tabaco, os seus malefícios segundo Camilo Castelo Branco em 1886, e a investigada sinergia que estabelece com a absorção de nicotina


No livro Poções e Paixões, de que já falámos detalhadamente neste blogue em 2019, o professor João Paulo André registou uma séries de pontes entre o tema da química e a ópera. Na mesma senda, deparei-me numa leitura de tempos livres com um trecho repleto de química em "A Queda de um Anjo" de Camilo Castelo Branco, publicado em 1886, na qual o personagem principal, o deputado Calisto Elói, tece considerações sobre o malefício do consumo de rapé, tabaco em pó consumido por via inalatória: 

Perguntado por que deixara de tomar rapé, costume indicativo do homem pensador e estudioso, respondeu que alguns escritores modernos atribuíam ao amoníaco, parte componente do rapé, o deperecimento das faculdades retentivas, pela acção deletéria que o poderoso alcali exercitava sobre a massa encefálica. 


O amoníaco como ingrediente endógeno do tabaco

O amoníaco e os compostos formadores de amoníaco são constituintes endógenos do tabaco (Callicutt et al., 2006b; Leffingwell, 1976; Schmeltz e Hoffmann, 1977). Embora estes compostos se encontrem em todos os tabacos, os tabacos Virginia ou Bright têm as concentrações mais baixas e os tabacos curados ou Burley têm as concentrações mais elevadas. Um conjunto relatado de medições descobriu que o tabaco Bright e o tabaco Burley têm ca. 0,02% e 0,16% de amoníaco, respetivamente, e 0,065% e 0,2% de azoto a-amino como amónia, respetivamente (Leffingwell, 1999). Os níveis de concentração típicos de amoníaco nas misturas de tabaco de cigarros comerciais dos EUA e internacionais são de ca. 0,02–0,4% (Callicutt et al., 2006b; Counts et al., 2004, 2005, 2006, 2007; Leffingwell, 1999), medido pelo ‘’método da amónia solúvel’’3 (Callicutt et al. ., 2006b; Contagens et al., 2004, 2005, 2006, 2007)

Fonte: Jeffrey I. Seeman; Richard A. Carchman (2008). The possible role of ammonia toxicity on the exposure, deposition, retention, and the bioavailability of nicotine during smoking, 46(6), 0–1881. doi:10.1016/j.fct.2008.02.021 


De entre os efeitos nocivos do amoníaco para seres humanos encontra-se a... perda de memória

De acordo com a ficha de segurança do amoníaco anidro pela empresa Linde, este produto de odor sufocante pungente, quando inalado em grandes quantidades, provoca broncoespasmo, edema da laringe e formação de pseudomembrana. 

Por outro lado, e respeitante às alegações ("deperecimento das faculdades retentivas") encontradas no livro por Camilo Castelo Branco, hoje sabemos que: que níveis elevados de amoníaco têm efeitos deletérios nas células [11]. Durante o envelhecimento, o nível de amoníaco no sangue e no sistema nervoso central é alterado, e os níveis alterados de amónia contribuem para múltiplos  mecanismos neuropatológicos, como o declínio cognitivo [12]. (...) Aumentos nos níveis de amoníaco no cérebro levam à perda de memória através de disfunção sináptica e desequilíbrio de neurotransmissores.

Fonte: Jo D, Kim BC, Cho KA, Song J. The Cerebral Effect of Ammonia in Brain Aging: Blood-Brain Barrier Breakdown, Mitochondrial Dysfunction, and Neuroinflammation. J Clin Med. 2021 Jun 24;10(13):2773.

 


O (polémico) incremento de deliberado de amoníaco no tabaco por via de aditivos

(...) Nos últimos anos, foi colocada a hipótese de que os ingredientes formadores de amoníaco adicionados ao tabaco pelos fabricantes de cigarros aumentam a biodisponibilidade da nicotina para o fumador (Bates et al., 1999, Benowitz e Henningfield, 1994, Gray et al., 2005 , Haustein, 2001, Henningfield et al., 2004a, Henningfield et al., 1998, Henningfield et al., 2004b, Hurt e Robertson, 1998, Kessler et al., 1997, Kessler et al., 1996, Pankow, 2001 , Pankow et al., 2003a, Pankow et al., 1997, Russell, 1976, Russell, 1980, Summerfield, 1999, Wayne et al., 2004, Wayne et al., 2006, Willems et al., 2006, Organização Mundial da Saúde , 2007). 

(...) A maioria dos cigarros vendidos na Europa e nos EUA são feitos de tabaco curado, que é ligeiramente ácido (pH 5,5–6,0). Em tais condições ácidas, a nicotina está presente principalmente na sua forma protonada (Brunnemann e Hoffmann, 1974, Sensabaugh e Cundiff, 1967), enquanto que em meio alcalino a nicotina está presente na sua forma desprotonizada (nicotina livre). Em contraste com a nicotina livre, a nicotina protonada (i.e., carregada) atravessa mal as membranas e, por isso, pensa-se que é menos facilmente absorvida nos pulmões (Pankow et al., 1997, Stevenson e Proctor, 2008, Wayne et al., 2006). A adição de amoníaco ao tabaco aumenta a alcalinidade e, portanto, a proporção de nicotina livre no tabaco. Numerosas publicações afirmam que o amoníaco é adicionado aos produtos de tabaco para aumentar a entrega de nicotina aos fumadores, aumentando a quantidade de nicotina não protonada (“livre”) no fumo (Pankow et al., 1997, Pankow, 2001, Stevenson e Proctor , 2008, Wayne et al., 2006, Wayne e Carpenter, 2009). Isto levaria a uma maior absorção de nicotina nos pulmões do fumador, pelo que os fumadores, repetidamente expostos a níveis mais elevados de nicotina, se tornariam mais dependentes da nicotina.

(...) A medida em que o amoníaco aumenta o potencial aditivo do tabagismo pode, em princípio, ter consequências tóxicas graves, isto é, aumentar o risco de doença para os fumadores humanos. Assim, se o amoníaco aumenta a biodisponibilidade da nicotina, tendo em conta as propriedades viciantes da nicotina, e dado o risco aumentado de doenças resultantes do tabagismo, qualquer factor químico que se pense aumentar o comportamento de fumar e a exposição à nicotina merece séria atenção.

Fonte:  J. van Amsterdam, A. Sleijffers, P. Spiegel, R. Blom, M. Witte, J.van de Kassteele, M. Blokland, P. Steerenberg, A. Opperhuizen, Effect of ammonia in cigarette tobacco on nicotine absorption in human smokers, Food and Chemical Toxicology, 49, 12, (2011) 3025-3030.