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Sobre um conto do livro de ficção 'Jogos de Azar', e a história de um acidente de trabalho no manuseamento de betume para pavimentação de estradas

No seu livro de contos intitulado Jogos de Azar (1963), o escritor português José Cardoso Pires apresenta no conto Estrada 43 a história de uma equipa de operários que, sob um calor tórrido, se encontra reparar o asfalto numa estrada de um local remoto e desolado do sul de Portugal. É este o cenário onde, páginas mais à frente, se dá um acidente de trabalho associado aos perigos de trabalhar na aplicação de betume a pavimentos sem as devidas precauções e experiência.

Como caraterização da situação, encontramos:

  • "Atropelando-se naquele inferno, correm atrás do alcatrão fundido, não vá ele endurecer, atolados nessa massa de que se derrama como um rio de lava em fogo".

O manuseamento deste material e seus efeitos sensoriais é descrito em várias passagens:

  • "Abriu a torneira do alcatrão. Fê-lo com cuidado, em duas voltas cortadas, para que o líquido não espirrasse para os lados."
  • "Bastava-lhe o calor do piso para saber a distância a que se encontrava da bomba e dos homens que a seguiam. Era um calor ácido, a princípio um bafo morno que se libertava do chão e, pouco a pouco, mais denso, mais vivo, até arder nas pernas, envolvendo-as, à medida que ele se adiantava pela zona ainda mole e pegajosa do asfalto. Nesse terreno levantava-se, por baixo das botas, o ligeiro vapor do alcatrão a resfriar sob as mangueiras de água, e começavam a ouvir-se os sopros compassados da bomba, abrindo o caminho, varrendo tudo com o seu jacto de fino alcatrão derretido";
  • "Espesso e pesado, o alcatrão rolava numa nuvem de fumo. A máquina engolia-o, guardava-o por instantes e, recomeçando a mover-se imediatamente, devolvia-o à estrada num orvalho carregado e luzidio.";

Uma nota de sobre os precários equipamentos de proteção individual:
  • "Todos usavam lenço ao pescoço e polainas de sarapilheira por causa das queimaduras."

A determinada altura do conto chegou inexperiente pessoal novo para ajudar na empreitada, e com eles um marcante acidente de trabalho acontece:

  • "Perto deles uma ferramenta tombou estrondosamente, um homem desatou a fugir, estrada abaixo, direito à caldeira grande. Ouviram-se gritos, ancinhos atirados, uns a seguir aos outros; de todos os lados surgiu gente a correr.";
  • "«Quando demos por ele já estava neste estado », declarou. «O mais natural é ter-se enganado a abrir a torneira e o alcatrão saltou-lhe para a cara. Resta saber se lhe apanhou os olhos.» ";
  • " «Tem as mãos pegadas à cara » anunciou alguém." 


Desencadeia-se então um processo de tomada de decisão para auxílio ao acidentado:

  • " «Levem-nos para ali. Petróleo, tragam depressa petróleo. (...) Ele, motorista, sabia muitíssimo bem o que estava a fazer. Neste momento tudo o que infeliz necesitava era de calor, não de ar - Calor para que o alcatrão amolecesse. E petróleo. "
  • " Mesmo de pé começou a lavar-lhe a cara com desperdício embebido em petróleo. A pouco e pouco, a máscara foi-se desfazendo, as pálpebras surgiram, rosadas e luzidias, mas estava unidas por uma linha espessa de alcatrão que lhe colava as pestanas. "
  • «Não abras ainda os olhos», disse o motorista, untando-lhe agora as faces e as mãos com azeite. «Pronto » , acrescentou daí a nada. «O principal já está. O Resto é com o doutor."


O trabalhador acidentado é depois encaminhado a cuidados médicos e mais nada se sabe do desfecho da situação.

Serve a invocação desta história neste blogue para mostrar como em literatura de ficção se conseguem encontrar histórias de foco social em que a química, os materiais, e as suas propriedades, são participantes imprescindíveis para o enredo. Histórias assim refletem cabalmente a noção de que a engenharia e a química estão por todo o lado na sociedade, e também tem espaço para lá dos livros técnicos. 

Outros exemplos publicados neste blogue envolvem um drama causado pela dessalinização no livro Estuário, da autora Lídia Jorge; e o amoníaco presente no tabaco presente em a Queda de um Anjo, de Camilo Castelo Branco.


Os vários perigos de trabalhar com betume:

O senso comum diz que trabalhar com asfalto quente pode provocar queimaduras. O asfalto de pavimentação fundido está geralmente entre 121 ºC e 162 ºC. O asfalto da cobertura pode estar mais quente do que 232 ºC.

As queimaduras não são o único perigo. Quando o asfalto é aquecido, pode produzir gases, vapores e fumos perigosos. Um exemplo é o gás sulfureto de hidrogénio, que pode acumular-se quando o asfalto quente é armazenado em contentores não ventilados. Demasiado gás sulfureto de hidrogénio pode nocauteá-lo ou matá-lo. Os solventes, ligantes e outros produtos químicos utilizados no asfalto também podem ser muito perigosos. Alguns emitem vapores tóxicos; alguns podem incendiar-se ou explodir.

Fonte: Electronic Library of Construction Occupational Safety and Health



 

Que equipamento de proteção individual usar ao trabalhar com betume?

  • Luvas com isolamento térmico para evitar que o asfalto queime ou irrite a pele. As luvas de algodão ou de couro não funcionam – os solventes podem encharcá-las.
  • Macacão ou camisa de manga comprida e calças compridas sem punhos. Mantenha as mangas arregaçadas e feche a gola.
  • Sapatos de segurança com biqueira de aço.
  • Uma proteção facial, não apenas uns óculos de segurança. Proteja os seus olhos e o seu rosto.
  • Um respirador. Se a sua exposição a fumos, gases ou vapores for superior aos limites Cal/OSHA, devemos fornecer o tipo certo de respirador, certificar-nos de que se ajusta, ensiná-lo a utilizá-lo e fornecer- -lhe um exame físico. Uma máscara contra o pó pode não ser proteção suficiente, especialmente numa área fechada.

Fonte: Electronic Library of Construction Occupational Safety and Health