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Sobre o livro não-técnico 'Estuário', e uma história de ficção em torno de uma família lesada pela aposta em dessalinização de água do mar

Num espaço que divulga temas de ciência exata na especialidade de engenharia química, introduzir um tema de humanidades é incorrrer num risco de desadequação. Porém, reconhecendo a necessidade de conciliar e unir aquilo que C.P. Snow designou em 1959 por as duas culturas (humanidades e ciência) enquanto mundos temáticos imiscíveis, divulgamos nesta publicação uma obra literária de ficção e o modo como faz a ponte, a partir das humanidades, para temas próximos da engenharia química. O livro chama-se Estuário, e foi escrito pela escritora portuguesa Lídia Jorge.

Privilegiando no enredo o percurso de vida da família Galeano, na vertente de um pai viúvo, armador de profissão, e seus múltiplos filhos, o destaque é o filho Edmundo, cujo voluntariado no Corno de África lhe provoca uma deficiência numa mão e leva a um repensar profundo das suas prioridades de vida.

A determinado momento, a respeito de Charlote, irmã de Edmundo que se enamora de um ecologista que mais tarde assume funções de Estado em temas do mar ou ambiente, vamos encontrar a seguinte passagem que poderia perfeitamente encaixar como introdução a um artigo sobre reciclagem de polímeros ou alternativa a estes:

« Porque o plástico não se dissolve, a molécula do plástico é resistente à acção do sol e dos vários elementos, permanecendo inalterável durante mil anos.»

Note-se como esta simples frase, numa obra literária consegue remeter para temas como os microplásticos no oceano, para a definição de plásticos, e para os tipos de plástico que efetivamente demoram tanto tempo a degradar-se.


O grande problema que justifica o livro é que toda a família Galeano cai em desgraça financeira devido a uma aposta errada que o armador - o pai Galeano - faz, aconselhado pelo seu filho Alexandre, e que se explica pelo objetivo 6 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, que visa assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos.

« Rosário disse-lhe  - « Fizeste mal os cálculos, Alexandre. Foi só isso. Quando outros já só apostavam na dessalinização da água do mar, tu apostaste no transporte de água das chuvas e perdeste. O outro lóbi era forte e o teu fraco. Apostaste no fraco e enganaste o pai. Como se na disputa entre o avião e o zepellin apostasses no balão de gás e não no aparelho com asas. Perdeste, azar. O transporte de água em navios-tanque de duas paredes, uma pipa de massa, foi o teu dirigível. »

Assim, a crise da família Galeano narrada em Estuário deve-se, alegadamente, à dessalinização como tecnologia vencedora no solucionamento da falta de água, em alternativa à recolha e transporte marítimos de água das chuvas. Neste particular, a acusação feita bate certo com o que tem sido a aposta em dessalinização um pouco por todo o mundo, nomeadamente no Médio Oriente e Norte de África, com destaque para a Arábia Saudita, onde se localiza o maior complexo mundial de dessalinização de água do mar

Se isto não fosse suficiente, o livro toca ainda na questão da triangulação dos problemas societais com os agentes políticos e com os lóbis de privados. A competição entre soluções técnicas e/ou tecnológicas pode ser turvada por pressões dos agentes económicos, ecologistas, académicos e/ou dos cidadãos junto do poder político. Se esta parte foge da competência técnica associada à especialidade de Engª Química, a verdade é que a indústria química tem também as suas instituições de lóbi e empresas poderosas que condicionam a agenda ou o desfecho de tomadas de decisão políticas, assim como é verdade que a mesma indústria se depara com objeções civis sempre que impacta depleção recursos naturais, riscos de poluição e/ou ameaças à saúde humana ou animal. Vejamos a explicação dada pelo (ex-)namorado de Charlote, quanto interpelado por Edmundo no seu gabinete ministerial:

« Mas mesmo sem ver o processo, pelo que lhe dizia Edmundo, podia reconstituir a sequência. Transporte de grande volume de água em navios. Apostava forte em como a decisão estava suspensa nos serviços de ação sanitária. Iria jurar. O processo tinha sido iniciado sete anos antes, quando o transporte de água entre regiões distantes começava a ser falado como uma solução economicamente viável. Cientificamente sustentada. Três anos depois, tinha sido cientificamente reprovada. Um grave problema. A água armazenada em grandes quantidades criaria lá dentro animais de estimação. Já os romanos teriam inventado os aquedutos a céu aberto porque conheciam esse processo de deterioração da água. Isto é, tinha ganhado o lóbi da dessalinização e a complexa indústria das filtragens. Cientificamente sustentado.. Deveria ter ficado por aí encalhado. Não desencalharia facilmente. Porque no caso de o processo de transporte de água resultar, para muitos outros, constituiria um perigo. Crenças cientificamente sustentadas. E nada se pode fazer contra a crença de uma época. Contra a crença de um homem pode-se fazer alguma coisa. Contra a crença de uma época não se pode fazer nada porque ela se transforma no ar que se respira.»

e

« Inércia. Um hábito ancestral de punir quem ousa ou inventa. »

Estuário configura assim um excelente campo sobre qual, em contexto de tempos livres, refletir sobre o âmbito social da Engenharia Química e no multifacetado impacto que pode ter na vida das pessoas.