António Gonçalves da Silva (AGS), engenheiro químico de formação, 49 anos de experiência entre cargos de indústria e académicos, atual Presidente do Colégio Nacional de Engenharia Química e Biológica da Ordem dos Engenheiros, cargo que exerce desde Abril de 2019.
Um multifacetado percurso profissional que inclui passagem por empresas como Quimigal, Sonadel, Colgate-Palmolive, e Bumble B; e por instituições académicas como Instituto Superior Técnico e Instituto Superior de Engenharia de Lisboa.
Embora estejamos já em Fevereiro, que 'resolução de ano novo' elegeria para a engenharia química (EQ) portuguesa em 2023? Porquê?
AGS: Sendo 2023,para a Ordem dos Engenheiros, o Ano OE Energia e Clima a resolução que elejo para a EQ tem que ver com isto mesmo: economia energética nos processos e utilização de fontes de energia mais limpas para se conseguirem dois objectivos: por um lado a sustentabilidade económica, seriamente em risco com os elevados custos da energia gerados pela instabilidade política internacional, e por outro a sustentabilidade climática necessária para assegurar o futuro do nosso planeta e dos seus ecossistemas.
Atendendo a que acompanha a área de EQ há mais de 4 décadas, que grandes transformações marcam, no seu entender, a profissão de então para a de agora?
AGS: Acho que houve transformações de dois tipos: nas tecnologias, processos e produtos, e nos modelos de negócio e de gestão associados à evolução do contexto político-económico mundial.
Existe uma Engenharia Química antes e depois do 25 de Abril de 1974? Que
contrastes aponta?
AGS: Vou responder usando a minha própria experiência. Tenho que começar por esclarecer que não estou na melhor posição para responder a esta pergunta, porque me formei no IST imediatamente antes do 25 de abril e, logo, não tive atividade profissional até 1974. Entre 1974 e 1979 fiz investigação
científica no IST, pelo que também não estive na industria durante este período.
Em 1979 entrei para a Quimigal (ex-CUF) no Barreiro onde tive oportunidade de participar no projeto de duas unidades: uma fábrica de poliéter-polióis (matéria prima da indústria dos poliuretanos), e também de etoxilados (tensoactivos não-iónicos) que arrancou em 1981; a seguir construímos (arranque em 1982) uma fábrica de formulações de polióis, e de prépolimeros de isocianatos para a industria dos poliuretanos.
Recordo neste período, ainda muito influenciado pelo período revolucionário de 1974-75, um ambiente humano excelente, com grande profissionalismo e espírito de equipa e de entreajuda entre os engenheiros e técnicos em geral; recordo a Quimigal/CUF como uma grande escola de EQ e de gestão industrial pelos conhecimentos que adquiri e que tive oportunidade de aplicar imediatamente; recordo igualmente um ambiente físico difícil (não tanto nas nossas fábricas, que eram novas), mas no parque industrial do Barreiro em geral: muita poluição atmosférica e não só, as ruas do complexo com péssimos pisos, muita sujidade; finalmente recordo a força sindical que impôs várias greves gerais no complexo fabril. Mas há que dizer o seguinte: o nível de profissionalismo, a cordialidade e a educação eram excelentes a todos os níveis da estrutura, mesmo perante divergências de pontos de vista e
posições.
Foi ainda na Quimigal, e depois numa empresa associada (Sonadel), que tive a oportunidade de evoluir na minha carreira de funções técnicas para funções de gestão industrial, onde continuei a praticar EQ, mas agora com uma capacidade de influenciar muito maior, no papel de gestor.
Tive ainda a experiência de trabalhar mais tarde numa multi-nacional (Colgate-Palmolive) um empresa de ponta que me proporcionou uma grande evolução nos conhecimentos de gestão industrial em áreas como Qualidade, Logística, Organização e Estratégia. Graças a esta evolução obtive o título de especialista (pelo Politécnico e pela Ordem) em Engenharia e Gestão Industrial e acbei sendo consultor de empresas nestas áreas.
Não sei se o 25 de Abril terá sido a única ou a principal causa, mas a minha experiência é de que a industria e a especialidade de EQ souberam singrar e adaptar-se aos novos tempos.
Que impacto teve a globalização na profissão de Engenharia Química? E as
tecnologias de informação?
AGS: Ora aí estão duas grandes alterações: uma nos modelos de negócio - das unidades de produção locais, produzindo para mercados nacionais ou regionais, para a produção destinada a mercados continentais ou globais ; outra tecnológica - as TI permitiram processos mais automatizados e reduziram as operações manuais de condução e controlo dos mesmos. E continuamos a evoluir com sistemas ciberfísicos, inteligência artificial, internet das coisas, big data, computação em nuvem, etc, etc…
Claro que tudo isto alterou a configuração do mercado de trabalho - de local para global- e aumentando e muito os requisitos (em profundidade e extensão) relativos às qualificações dos profissionais, que deverão agora ser capazes de aprender ( e a capacidade de aprender é chave!!!) e utilizar as novas tecnologias disponíveis. Além disso diminuiu em número a mão-de-obra necessária à condução dos processos nas unidades fabris. Em resumo: qualificações mais elevadas, headcount mais baixo
O que é que considera estar por fazer em matéria de mercado de trabalho
para engenheiros químicos em Portugal?
AGS: Quando terminei o meu curso no IST, fui fazer o meu estágio (então obrigatório) na Shell, em Delft na Holanda. Era já o sinal de que o mercado de trabalho deixava de estar limitado pelas fronteiras dos estados. E isto apesar de, antes do 25 de Abril de 1974, a mobilização para a guerra colonial dificultar as saídas de jovens de Portugal para o estrangeiro.
Antes da revolução de 1974 havia também oportunidades nas empresas industriais instaladas em Angola e Moçambique (a mim ,por exemplo, foi-me feito um convite para ir trabalhar para Moçambique).
Depois do 25 de Abril de 1974 muitos jovens engenheiros (químicos e não só) optaram pela emigração e realizaram-se até acções de promoção, dirigidas a finalistas, em escolas de engenharia portuguesas, envolvendo empresas estrangeiras e países de destino (e.g. Noruega).
O que há a fazer em Portugal é naturalmente criar dimensão e atratividade no mercado de trabalho nacional, com investimentos relevantes no sector químico industrial e condições de trabalho competitivas para os EQ (salariais e não só). Aqui o investimento estrangeiro tem sido muito
relevante.
Faço notar que os investimentos relevantes que refiro podem sê-lo quanto à capacidade instalada, mas igualmente quanto ao conhecimento técnico envolvido, às oportunidades de desenvolvimento profissional, aos modelos de gestão da organização e à inovação nos produtos e processos.
Qual a principal oportunidade industrial que reconhece para a próxima
década em Portugal?
AGS: Na linha da minha resposta à primeira pergunta, não poderei deixar de considerar a energia como principal oportunidade industrial, pela sua dimensão, por ser essencial a todos os sectores de actividade, e pelo seu relacionamento direto com a sustentabilidade climática. Portugal tem excelentes condições para se impor no mercado das energias limpas: temos sol, vento e mar, temos uma localização geográfica favorável no extremo sudoeste da Europa, que favorece o relacionamento logístico com África, Europa e América e temos boas relações comerciais, até com raízes históricas, nestes três continentes. E temos instalações portuárias de águas profundas e infraestruturas, que poderão ainda ser aumentadas…
Como avalia a visibilidade da profissão EQ na sociedade portuguesa? E na
lusofonia?
AGS: A profissão de EQ não compete em visibilidade na sociedade portuguesa, com outras especialidades de engenharia como Civil, Mecânica, Electrotécnica ou mesmo Informática. Mas, pela minha experiência, a engenharia química e os EQ estão presentes, não só na industria química, mas também noutros sectores económicos, industriais ou não. Tenho encontrado EQ em posições de destaque em sectores como a metalo-mecânica, agroindústrias, saúde, administração pública, consultoria, formação profissional, etc..
E, mesmo sem grande visibilidade, há sempre Engenharia Química nas matérias-primas e materiais usados na generalidade dos sectores económicos.
Considera que a profissão de EQ tem o prestígio ou importância adequados no panorama português?
AGS: Apesar de a visibilidade da profissão de EQ não ser extraordinária, não me parece que o prestígio da profissão ou o reconhecimento da sua importância estejam em causa. Os EQ adaptam-se bem a uma grande diversidade de funções e normalmente dão boa conta do recado. São profissionalmente respeitados.
Na sociedade em geral, a Química é frequentemente vista e citada como algo de negativo. É frequente ouvir dizer que um produto é bom por “não ter químicos”, ou “que é natural e isento de químicos”. Os “químicos” fazem mal à saúde e são fontes de poluição. É o lado populista da simplificação mediática…
Curiosamente porém, no espaço público, o prestígio da profissão de EQ, não é afetada, talvez pelo facto de os EQ serem encarados como técnicos com competência para controlar e dominar o tal “monstro” da Química…
Que grandes ameaças pairam sobre a atual profissão de EQ?
AGS: O combate pela sustentabilidade ambiental, com a redução de emissões de gases com efeito de estufa poderá ser encarado como uma ameaça, mas é também uma enorme oportunidade de a EQ assumir um importante papel de fonte das soluções (e.g. sequestro/mitigação dos gases com efeito de estufa). Haverá certamente que reformular processos, matérias-primas e produtos, tecnologias e instalações industriais. É a mudança necessária, mas todos sabemos que “a única coisa verdadeiramente permanente é mesmo a mudança”… E o binómio ciência química – Engenharia Química têm demonstrado ao longo da história uma enorme capacidade de inovação e de adaptação a novas circunstâncias, pelo que prevejo que estaremos à altura dos desafios.
Claro que a conjuntura político-económica, que condiciona a legislação, a organização empresarial e os meios financeiros pode tornar tudo mais difícil ou mais fácil, mas mantenho um ponto de vista otimista e toda a confiança na capacidade de a EQ e a sua industria superarem as dificuldades.
E que oportunidades vislumbra?
AGS: A engenharia é a grande responsável pela prosperidade e elevado conforto do estilo de vida atual. E a EQ é um pilar fundamental que assegura a acessibilidade e abundância dos materiais que estão presentes no dia a dia, e de que não abdicamos. A EQ não pode deixar de estar presente na evolução contínua das sociedades.
A indústria química contribui para áreas fundamentais como a energia, a saúde, a alimentação e a generalidade dos bens de consumo e, por isso, as oportunidades são vastas…
Que mensagem deixaria para os potenciais estudantes e/ou jovens profissionais de EQ? Vale a pena ser EQ no Portugal do século XXI?
AGS: A sociedade precisa de engenheiros. Há mais de 20 anos escrevi que o engenheiro “vai buscar os resultados da ciência e converte-os em produtos úteis que são postos à disposição de todos. É uma espécie de Prometeu da sociedade moderna, que traz ao homem os produtos que constituem o fogo do
progresso…” .
E a EQ está no centro da engenharia com ligações fecundas e amplas a várias ciências como a Física, Química e a Biologia (sem esquecer a Matemática, claro). O futuro não pode dispensar a EQ, e os profissionais de EQ têm, como já disse atrás, dado boa conta de si nas diversas áreas da sua intervenção, o que só abona em favor da qualidade da preparação académica que as nossas
escolas de EQ proporcionam.
Por isso a minha mensagem é de que vale certamente a pena ser EQ, e mais ainda neste período excitante em que os desafios que enfrentamos obrigam a alterar paradigmas das sociedades quanto a materiais e a práticas.
O que diria aos EQ portugueses que não estão inscritos na Ordem dos Engenheiros: por que motivo o deveriam fazer?
AGS: A profissão de EQ requer confiança pública pelo elevado nível de responsabilidade a que obriga, diretamente ligada à perigosidade que inevitavelmente resulta de ser exercida por pessoas sem qualificações. A qualificação exigida é simplesmente que os profissionais que a exercem sejam Engenheiros Químicos. Ora, segundo a lei, a Ordem dos Engenheiros é a única instituição que atribui em Portugal o título profissional de Engenheiro Químico (as escolas de engenharia atribuem títulos académicos mas não emitem a cédula profissional de EQ). É absurdo e muito perigoso que possa haver
empresas industriais do sector químico , qualquer que seja a sua dimensão, que não sejam conduzidas sob a responsabilidade de EQ qualificados pela Ordem, organismo no qual o Estado delegou o papel de regulador da profissão.
Além disso durante as décadas da vida ativa, qualquer profissional carece de atualização de conhecimentos, Ora, a Ordem dos Engenheiros promove continuamente a atualização técnica dos seus membros, assegurando a manutenção das competências requeridas para o exercício da profissão ao
longo do tempo. Além disso, através dos eventos que a Ordem implementa (colóquios, visitas técnicas, etc.), promove igualmente o contacto e o estabelecimento de vantajosas relações pessoais e profissionais (networking) entre os membros da comunidade dos EQ.
Que livro recomendaria para leitura à comunidade de profissionais de EQ e por que motivo o recomenda?
AGS: Entre vários possíveis, realço o livro do professor da FEUP e Engº Químico, José Luís Figueiredo, “A Relevância da Industria Química e o Seu Contributo para a Sociedade”, Principia, 1ª edição (2022). Esta obra, que teve o patrocínio da Fundação Amélia de Melo e fez parte da comemoração dos 150 anos de Alfredo da Silva -“O Futuro como Tradição”, promovida pela Fundação-, descreve com dados abundantes e rigorosos a evolução histórica da Indústria Química em Portugal e no mundo, e deixa-nos uma perspetiva da sua evolução no futuro.
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O BEQ agradece publicamente a António Gonçalves da Silva a disponibilidade de ser entrevistado e a prontidão com que respondeu ao convite. Entrevista realizada em Fevereiro 2023.